Introdução: entre o Marco Civil e a Maré Digital
Quando o Marco Civil da Internet foi aprovado em 2014, após um amplo debate público envolvendo governo, sociedade civil e empresas, celebrou-se a consagração de princípios fundamentais como a neutralidade da rede, a proteção à privacidade e a liberdade de expressão. Seu artigo 19[1], que condiciona a responsabilidade civil das plataformas digitais à existência de ordem judicial prévia para a remoção de conteúdo, buscava equilibrar tais garantias com a necessidade de responsabilização por abusos cometidos no ambiente digital.
ados alguns anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a julgar a constitucionalidade do referido dispositivo, tendo como pano de fundo uma crescente pressão social e política pela regulação das redes. O julgamento, iniciado em 2024 e ainda inconcluso, já reúne uma miríade de votos com fundamentações díspares. A pluralidade de posicionamentos, embora esperada num tribunal plural, tem revelado uma característica estrutural da cultura jurídica brasileira: a lógica do contraditório, não como princípio garantidor do debate racional, mas como expressão de uma tradição de divergência permanente que compromete a previsibilidade e a segurança jurídica.
Mais do que discutir se o artigo 19 deve ou não ser mantido, o julgamento tem servido como espelho das ambiguidades da relação entre direito, tecnologia e democracia no Brasil. As big techs, a sociedade civil, o Congresso e o Judiciário travam um embate sobre os limites da liberdade de expressão e os mecanismos de combate à desinformação.
Mas, ao contrário de indicar um caminho interpretativo estável, o Supremo parece reiterar uma prática institucional de divergência performática e de decisões fragmentadas, que dificulta a internalização das regras jurídicas pela sociedade.
Este artigo tem como objetivo analisar o julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet sob dois prismas: o jurídico, examinando os fundamentos dos votos proferidos até aqui, e o antropológico, demonstrando como a lógica do contraditório, tal como descrita no artigo “A lógica do contraditório: ainda somos medievais”, de minha autoria com a Dra. Fernanda Duarte, se manifesta de maneira contundente neste processo decisório. A partir dessa análise, busca-se evidenciar como o modelo discursivo que estrutura o campo jurídico brasileiro – baseado mais na divergência retórica do que na construção de consensos normativos interpretativos – acaba por produzir insegurança jurídica e falta de previsibilidade sistêmicas em áreas de alta relevância social.
1. Um plenário, quatro teses: anatomia dos votos em conflito
Até o momento, ao menos quatro votos substanciais foram proferidos pelos ministros do STF, cada qual com fundamentos, interpretações e propostas distintas sobre o alcance e os limites do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Longe de representar simples nuances interpretativas, esses votos revelam verdadeiros modelos concorrentes de regulação da internet e de responsabilidade das plataformas digitais.
1.1. Ministro Luís Roberto Barroso: inconstitucionalidade parcial com exceções específicas
O Ministro Luís Roberto Barroso propôs uma solução intermediária no julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Embora tenha reconhecido a inconstitucionalidade parcial da norma, sugeriu uma interpretação que preserve a regra geral de necessidade de ordem judicial, mas com exceções para lidar com riscos sistêmicos.
Sua proposta organiza-se em dois eixos principais:
- De um lado, mantém a responsabilidade subjetiva das plataformas quanto a conteúdos ilícitos produzidos por terceiros.
- De outro, introduz um dever de cuidado institucional, sobretudo diante de situações graves e persistentes, como pornografia infantil, tráfico de pessoas, terrorismo e incitação à violência.
Nos casos de crimes contra a honra, o Presidente do STF sustenta que deve prevalecer a exigência de decisão judicial prévia, em nome da proteção à liberdade de expressão. Já nos demais crimes, ite que a notificação privada adequada seja suficiente para justificar a remoção do conteúdo.
Ele também apelou ao Congresso Nacional para que elabore um novo marco regulatório, voltado à contenção de riscos sistêmicos, prevendo mecanismos como auditorias periódicas, transparência ativa e supervisão por entidade independente.
Enquanto tal regulação legislativa não é aprovada, o ministro propôs que as plataformas digitais adotem medidas voluntárias de transparência, tais como a publicação de relatórios anuais, inspirados no modelo europeu.
1.2. Ministro Dias Toffoli: Inconstitucionalidade e dever de agir das plataformas
No voto proferido em dezembro de 2024, o Ministro Dias Toffoli se posicionou pela inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Segundo ele, a norma confere uma imunidade excessiva às plataformas digitais, permitindo que conteúdos potencialmente danosos se espalhem com facilidade, o que compromete a proteção de direitos fundamentais no ambiente virtual.
Ele defendeu que o mesmo rigor jurídico vigente no mundo offline deve se aplicar ao meio digital. Assim, propôs a responsabilização objetiva das plataformas em hipóteses graves, como a existência de perfis falsos, propagação de discursos nocivos, sendo possível a mera a notificação extrajudicial para que haja a remoção do conteúdo.
O ministro, entretanto, distinguiu outros serviços digitais que merecem tratamento específico. Ferramentas como correio eletrônico e blogs jornalísticos devem seguir regras próprias.
1.3. Ministro Luiz Fux: Regime de responsabilização por notificação fundamentada
O Ministro Luiz Fux também considerou que o artigo 19 do Marco Civil da Internet é inconstitucional. Para ele, exigir que haja uma decisão judicial para que as plataformas sejam responsabilizadas por conteúdos prejudiciais é uma barreira que dificulta a proteção da dignidade humana na internet.
Segundo o ministro, as plataformas digitais não funcionam como a imprensa tradicional, que possui editores e mecanismos de controle antes da publicação. Ao contrário, essas plataformas recebem e distribuem uma grande quantidade de conteúdos sem qualquer filtro, o que facilita a divulgação de mensagens que violam direitos fundamentais.
Fux entende que, em casos de conteúdos gravemente ilegais — como racismo, pedofilia, incitação à violência ou apologia ao golpe de Estado —, as plataformas têm o dever de agir imediatamente, mesmo sem aviso prévio, removendo o material. Ele defende que a gravidade desses casos exige ação rápida e direta por parte das empresas.
Já nas situações que envolvem ofensas à honra, imagem ou privacidade de alguém, o ministro acredita que a plataforma só pode ser responsabilizada se for formalmente notificada pelo ofendido, por meios adequados. E reforça que as empresas devem garantir canais de denúncia íveis, seguros e eficazes para esses casos.
Por fim, Fux afirmou que, se o conteúdo ofensivo tiver sido impulsionado por pagamento (ou seja, promovido para alcançar mais pessoas), a plataforma deve ser considerada plenamente ciente da ilegalidade do que está sendo divulgado — e, por isso, responde diretamente por ele.
1.4. Ministro André Mendonça: validação integral do modelo vigente
Na sessão de 5 de junho de 2025, o Ministro André Mendonça defendeu a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e propôs uma atualização das regras sobre liberdade de expressão, adaptando-as aos desafios da era digital.
Para ele, a regulação das redes sociais deve ser feita pelo Congresso, e não pelo STF. Destacou que diferentes tipos de serviços digitais — como redes sociais, mensageria privada e marketplaces — exigem tratamentos distintos, considerando fatores como alcance, algoritmos e natureza da comunicação.
Inspirado em normas europeias, propôs uma regulação proporcional, que diferencie conteúdos promovidos pelas plataformas daqueles ados espontaneamente pelos usuários. Também defendeu proteção reforçada às falas de agentes públicos, essenciais ao debate democrático.
O Ministro criticou o uso de algoritmos para remoção automática de conteúdo, alertando para os riscos de censura indireta. Para ele, as plataformas devem ser responsabilizadas com base em sua estrutura e procedimentos, não em publicações isoladas.
Sugeriu um modelo de autorregulação regulada, com canais de denúncia, transparência e revisão periódica, que pode inclusive afastar a responsabilidade das empresas se bem aplicado. Destacou que a maioria das remoções já ocorre sem ordem judicial, e que a regulação deve focar em deveres de cuidado, e não em resultados.
Por fim, reafirmou que perfis automatizados não têm proteção constitucional e criticou a exclusão de perfis sem decisão judicial, por violar o devido processo legal. Para Mendonça, o perfil digital é parte da identidade da pessoa e só pode ser removido em casos excepcionais.
2. A Lógica do Contraditório em ação: quando a divergência gera insegurança jurídica
A multiplicidade de votos no julgamento do artigo 19 do Marco Civil não é apenas um reflexo da pluralidade de visões dentro da Corte. Ela é expressão direta de uma característica estruturante do campo jurídico brasileiro: a lógica do contraditório, que se distingue do princípio constitucional do contraditório.
Enquanto este último tem valor normativo e se traduz na garantia de ampla defesa e participação no processo, a lógica do contraditório descrita em minha pesquisa e de Fernanda Duarte revela uma prática arraigada na cultura jurídica nacional, na qual o dissenso, ou melhor, a divergência, não visa à construção de consensos racionais, mas à reiteração da autoridade individual dos intérpretes da norma. Como demonstrado no nosso artigo, trata-se de uma herança da escolástica medieval, em que o exercício do direito é mais um torneio argumentativo do que uma prática comunicativa voltada ao convencimento coletivo.
Essa lógica conduz a um modelo de deliberação em que o pluralismo é formal, mas a consequência é a dispersão: cada ministro expõe sua tese como manifestação isolada de autoridade, e o resultado final se dá pela soma aritmética de votos, não pela construção dialógica de fundamentos comuns. Assim, não se tem uma jurisprudência que oriente comportamentos ou traduza previsibilidade normativa. Tem-se, ao contrário, uma coleção de entendimentos particulares que enfraquecem o sentido institucional das decisões do STF.
O julgamento do artigo 19 é exemplar: temos ministros que declaram a norma inconstitucional com ressalvas (Barroso), outros que a invalidam em sua essência (Toffoli), um terceiro que a considera válida em sua literalidade (Mendonça) e ainda outro que a considera inconstitucional com outros fundamentos. Não há consenso quanto à ratio decidendi (razões da decisão), que deveria ser colegiada. O que há é um placar. Em outras palavras, a soma dos votos pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 19. Mas, não, a construção de um consenso de porque se é ou não constitucional.
Esse modelo reforça a instabilidade normativa e torna difícil a internalização social das decisões judiciais. Como saber, afinal, o que efetivamente vale após o julgamento? Como agir juridicamente orientado, quando a autoridade da Corte se dilui em opiniões concorrentes que não produzem consenso nem doutrina vinculante?
O resultado é um ambiente de incerteza: para o cidadão, que não sabe se pode confiar na proteção de sua liberdade de expressão; para as empresas, que não sabem se serão responsabilizadas por conteúdos de terceiros mesmo sem ordem judicial; e para o próprio Estado, que perde capacidade de coordenação e legitimação institucional.
3. A função contramajoritária em xeque: quando o Supremo se dilui
O Supremo Tribunal Federal é, por excelência, uma instituição contramajoritária. Isso significa que, em uma democracia constitucional, cabe a ele atuar como contrapeso às maiorias políticas momentâneas, protegendo os direitos fundamentais, garantindo a supremacia da Constituição e oferecendo estabilidade normativa em tempos de incerteza. Contudo, para que essa função se cumpra efetivamente, é necessário que suas decisões tenham clareza, coerência interna e capacidade de orientar condutas futuras. Sem isso, a legitimidade do STF se fragiliza e seu papel institucional se dissolve.
O julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet desafia diretamente essa função. Ao invés de conferir segurança e previsibilidade, a multiplicidade de entendimentos e a ausência de uma tese clara majoritária têm provocado o efeito oposto: desorientação normativa, insegurança jurídica e questionamento da autoridade institucional da Corte. O que deveria ser um marco regulatório para o ambiente digital tornou-se mais um capítulo de divergência performática, onde o pluralismo dos votos não se converte em efetividade normativa.
Além disso, essa dispersão decisória abre espaço para riscos de captura institucional. Na ausência de uma orientação clara do STF, diferentes atores – sejam políticos, econômicos ou midiáticos – am a disputar o conteúdo normativo das decisões de forma oportunista. As plataformas digitais, por exemplo, podem invocar ora o voto de Barroso, ora o de Mendonça, ora a tese de Toffoli, para justificar suas ações, omitindo-se de responsabilidades ou excedendo seus poderes conforme lhes convier.
Esse cenário é particularmente perigoso em tempos de desinformação em massa, polarização política e crescente judicialização de temas sociais. A Corte, ao não oferecer uma fala única institucionalizada, alimenta a percepção de que seus julgamentos são indeterminados, sujeitos a interpretações oportunistas e incapazes de assegurar os direitos fundamentais de forma uniforme e universal.
A crise da função contramajoritária não é nova. Mas se intensifica quando decisões que deveriam oferecer estabilidade em áreas sensíveis – como a regulação do discurso público na internet – tornam-se palco de disputa entre ministros, com protagonismo individualizado e aparente pouca preocupação com o impacto sistêmico de seus votos. O julgamento do artigo 19, ao invés de estabelecer um padrão normativo seguro, tornou-se um espelho de nossas contradições institucionais.
Nesse contexto, é urgente repensar não apenas os critérios de fundamentação das decisões colegiadas do STF, mas também a forma como a Corte se comunica com a sociedade. O STF precisa voltar a produzir acórdãos, e não apenas coleções de votos individuais. Precisa ser Corte Colegiada. A função contramajoritária exige responsabilidade institucional, compromisso argumentativo e autoridade normativa – elementos que a lógica do contraditório, tal como hoje operada, tem sistematicamente corroído.
Conclusão: O futuro da regulação digital e o STF que precisamos
O julgamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet escancara não apenas as divergências jurídicas em torno da regulação das plataformas digitais, mas também os limites de um modelo decisório centrado na lógica do contraditório como disputa e não como construção. A ausência de consenso mínimo, a fragmentação dos votos e a indeterminação dos efeitos práticos das decisões tornam o Supremo Tribunal Federal um vetor de incerteza, quando deveria ser âncora de estabilidade constitucional.
Diante disso, o caminho possível a por múltiplas frentes. Do ponto de vista institucional, é necessário que o STF assuma de forma mais clara sua função pedagógica e orientadora, apresentando decisões colegiadas que ultraem a simples soma de votos individuais. A tese de repercussão geral precisa ser formulada com objetividade e força normativa, a fim de produzir segurança jurídica para os demais tribunais, para os atores privados e para a sociedade em geral.
Do ponto de vista do direito processual e da cultura jurídica, é preciso avançar na superação da lógica da divergência perpétua como expressão de erudição. Valorizar o consenso não é sufocar a pluralidade, mas organizá-la em prol da racionalidade pública. O STF deve ser menos um cenário de disputatio escolástica e mais um espaço de produção de orientação institucional legítima. Para isso, seus ministros precisam deliberar de forma comunicativa, com abertura argumentativa, disposição ao convencimento mútuo e respeito à autoridade do colegiado.
Finalmente, no campo da regulação digital, o julgamento do artigo 19 pode e deve servir como ponto de inflexão. O Brasil precisa de um modelo normativo claro, equilibrado e funcional, que proteja a liberdade de expressão sem abrir espaço para abusos e impunidades. Tal modelo não pode ser refém da oscilação jurisprudencial ou da hesitação judicial. Deve ser fruto de uma pactuação democrática ampla, na qual o STF tenha papel de garantidor, não de autor exclusivo.
A internet impõe desafios inéditos ao direito e à democracia. Mas nenhum deles será enfrentado com sucesso se não contarmos com um Judiciário capaz de produzir sentido, orientação e confiança. Que o julgamento do artigo 19 não seja apenas mais um caso emblemático perdido na dispersão dos votos, mas o início de uma nova fase: a de um Supremo mais claro, mais institucional e mais comprometido com a previsibilidade jurídica e com a cidadania digital no século XXI.
[1] Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. § 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais. § 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.